Vivemos um momento emblemático nessa atual fase da vida produtiva e do trabalho, a partir da reestruturação iniciada nos anos 1970 e recrudescida na década de 1990, que se faz presente até nossos dias. Na verdade, esta provocou o que se tem chamado de “a fórmula 24/7” em atividade (24 horas por dia, 7 dias por semana), vivendo a vida e o trabalho em entrelaçamento, em ritmo incessante e frenético, este “atropelando” os momentos que antigamente se denominavam de lazer ou de ócio.
Trata-se de um modus vivendi caracterizado pelo acúmulo de atividades, de entrelaçamento de compromissos e dedicação ao trabalho com a vida pessoal, de produção sem trégua. Em decorrência disto, cada vez mais se torna impossível fazer pausas, ficar desconectado, viver sem interrupções e evitar a interfrerência do trabalho na vida pessoal. Um modo de vida onde o tempo dado pelo relógio passa a ser definido como uma continuidade de operacionalidade da vida, de funcionamento sem interrupção, jamais de parada para a contemplação, a reflexão, a intimidade consigo e o cultivo da individualidade.
Até onde esse estado de coisas, esse modus vivendi, possibilita aos seres humanos interrupções genuínas de um tempo para si, de intervalos de calma, de descanso e de silêncio? Até onde é possível sair da condição de permanente exteriorização, do cultivo da imagem, do mostar-se, do macular a intimidade com a exposição e a visibilidade permanentes, que também ocupam um tempo enorme? Essa exteriorização da vida e das atividades que “polui” o nosso cotidiano, sendo a mesma considerada uma postura necessária como afirmação pessoal e profissional? Essa forma de viver que é mais um elemento a retirar os seres humanos de si, do seu eixo, do contato íntimo com sua essência, num sequestro permanente de si mesmos e por si mesmos?
Faz-se importante analisar com ponderação e calma esta situação. Ouve-se cada vez mais, por meio de depoimentoes informais, comentários, conversas, debates, que vivemos correndo, “na correria”, como se custuma dizer. Por quê? Para quê? Onde queremos e esperamos chegar?
Uma coisa é certa: estamos “correndo” na contramão da história de nossos sonhos e do cultivo de nossa identidade. Na oposicão de nossa essência e, invariavelmente, de valores que seriam fundamentais, como valores humanos e humanizadores. Por que viver sob essa forma? Em nome de que? Certamente porque estamos sendo coaptados pela lógica das exigências da vida pautada pela equação 24/7, na qual não cabe qualquer dimensão do que não seja utilitário, onde o que é reflexivo e contemplativo passa a ser visto como passividade inútil, a ser encarado como perda de tempo de produção e de consumo. Se identidades, sonhos e ideais forem respeitados e preservados, certamente estarão em rota de colisão com as exigências do universo 24/7. E aí reside a centralidade da vida humana na contemporaneidade, na lógica do capital, em rota de harmonia com o que coisifica o que é humano.
Estamos vivendo o paradigma do incremento implacável do valor monetário, sendo que qualquer intervalo de tempo possível, mesmo o tempo das relações sociais, se torna elemento de nossas vidas convertidas aos valores de mercado.
Segundo um excelente artigo que li nas redes sociais nos últimos dias, intitulado “A vida sem Pausa”, de Jonathan Crary, “Um ambiente 24/7 tem a aparência de um mundo social, mas na verdade é um modelo não social de comportamento mecânico e uma supressão do ato de viver que esconde o custo humano exigido para se manter efetivo.” Ele nos chama a atenção para algo inédito: frente à lógica vigente, o que sobra, uma vez que diversão, descanso, relações sociais se transformam mais e mais em “produtos faturados”, não é o sonho mas, sim, o sono. Este que se constitui como a necessidade humana primária de sobrevivência e que não pode ser “colonizada, financiada, mercantilizada”, como bem diz o escrito citado; o sono “do qual não se pode extrair qualquer valor monetário” e que nunca poderá ser totalmente ocupado, racionalizado ou instrumentalizado. Será que para sermos nós mesmos, coerentes com nossa essência, não submissos à lógica do capital que se traduz na equação 24/7 necessitaremos cada vez mais substituir nossos sonhos por nosso sono? Lamentável se assim a vida humana se conduzir.
Proponho que pensemos seriamente sobre isto. O que o futuro nos reserva se entrarmos substantivamente na lógica do 24/7? Ou se já nela ingressamos? Possivelmente a destruição paulatina, como seres vivos, elementos da natureza que somos, necessitados de espaço psíquico de vida integral, incluindo aí as instâncias do racional e do emocional, centrados em nossa essência, nosso ritmo, nossa subjetividade. Certamente se o preço a pagar for a substituição de nossos sonhos pelo sono, para que possamos ser nós mesmos, não teremos um bom futuro, como já está sinalizando o presente.
Autor: Dra. Marilu Diez Lisboa.
Fonte: http://instserop.com.br/trabalho-no-sec-xxi/.